spacer

segunda-feira, dezembro 25

 

Na noite de Natal...

Na noite de 24 de dezembro, Carlos olhava as vitrines apagadas do centro do Rio sem nenhuma animação. Quando seus pais eram vivos, anos atrás, o Natal ainda tinha alguma graça. Agora, as decorações, as pessoas cheias de sacolas, todo o clima não pareciam sequer fazer sentido.

Aliás, a idéia toda era ridícula. Comemorar o nascimento de alguém que até hoje não se provara a existência, na mente do garoto de quinze anos, chegava a ser uma grande tolice. Fingir que tudo estava bem, que naquele dia todos os problemas do mundo estariam sendo resolvidos, era hipocrisia.

Não dava para ignorar o cheiro do lixo acumulado nos cantos escuros. Ou achar que as famílias de mendigos miseráveis dormindo na praça do Castelo estavam ali por quererem comemorar na rua.

Ao contrário dele, que escolhera estar ali. Dera uma desculpa qualquer aos tios, fingiu não ver os olhos magoados da família que o adotara e saira para andar sem destino. Não se interessava em estar ali, comemorando o nada. No dia seguinte, abriria os presentes e comeria os restos.

Andou um bocado pela Avenida Rio Branco, bem no meio da rua. Não tinha movimento, era como se ele estivesse sozinho. Ficou perdido dentro de si mesmo, remoendo as infelicidades dos seus quinze anos. Classe média, morando com os tios, estudando em uma boa escola, tendo uma mesada razoável, sofria com a incompreensão. Será que só ele via as crueldades do mundo? Era o único que percebia o quanto de sofrimento afetava os menos favorecidos?

Uma buzina o trouxe de volta à realidade. Uma senhora em um Corsa preto parara ao seu lado.

- Boa noite, meu rapaz, você poderia me explicar como eu faço para chegar na Lagoa?

Aborrecido, Carlos começou a explicar.

- Olha, a senhora desce a rua até o final. Na Cinelândia, a senhora tem que pegar a pista do Aterro e...

Ela o interrompeu com um gesto.

- Meu querido, com certeza eu vou me perder... Desculpe incomodar mais ainda, você poderia ir comigo até lá? Eu pago o táxi para você voltar...

Estranhou um pouco. Mas a velha estava sozinha, e se ele reparasse que o caminho não era o certo, poderia saltar mesmo com o carro em movimento. Resolveu arriscar e sentou no banco do carona.

- Agora, o que um rapaz como você está fazendo no centro do Rio à essa hora?

Carlos respondeu entre dentes.

- Passeando.

- E sua família?

- Em casa, comemorando o Natal...

- Por que não está com eles?

- Não gosto de Natal. Não acredito em Cristo e nessas coisas todas. Olha, a senhora entra aqui...

Ela conduziu o carro.

- Sabe... Como é o seu nome?

- Carlos.

- Então, Carlos. Quem disse que só quem acredita em ?Cristo e nessas coisas todas? gosta de Natal?

Ele cruzou os braços.

- Olha, dona, se vai me dar lição de moral e coisa assim, avisa. Eu não quero saber. Não gosto e tenho direito de não gostar.

A mulher concordou e continuou dirigindo em silêncio por alguns minutos, seguindo as direções que Carlos dava.

Em um dado momento, voltou a falar.

- Natal não tem muito a ver com o nascimento de ninguém... Claro, quem é cristão diz que é sobre isso... Mas Natal tem a ver com esperança. Várias culturas comemoram essa época do ano, pedindo renovações e melhorias...

- E de que adianta? O mundo está uma merda mesmo...

- Entre achar que ele está ruim e acreditar que ele pode melhorar há toda a diferença...

Chegaram na Lagoa. Rodaram mais um pouco e pararam defronte à grande árvore montada no espelho d?agua.

- Veja isso. É um produto de marketing, mera propaganda de uma instituição financeira...

- Exatamente, dona, com esse dinheiro todo muitas pessoas poderiam comer...

- Concordo. Pode ser um grande desperdício, mas firmas capitalistas não estão no mundo para fazer caridade ou buscar melhora-lo. Quem está no mundo para isso, somos nós...

- E o que uma simples pessoa pode fazer?

- Simplesmente a sua parte. Talvez essa árvore seja apenas golpe publicitário, porém se apenas uma pessoa, ao olhá-la, sentiu-se melhor e com mais vontade de ajudar os outros, ela valeu a pena ter sido construída...

- A senhora é muito otimista... ? Carlos olhou para o lado quando falou, e tomou um susto. A mulher ao seu lado não era a velhinha que estivera com ele, mas uma jovem loira, olhos verdes transparentes e pele que parecia brilhar com luz própria. Não podia dizer se era feia ou bonita, pois tudo ao seu redor parecia embaçado, como se ela estivesse em outro lugar.

A senhora sorriu ao ver que seu disfarce se desvanecera.

- Sou sim, Carlos. Estou nesse mundo há muito tempo, tempo demais. Vi o seu povo descer das árvores, morar em cavernas, começar a construir cavernas... Conheci mesmo esse Jesus, um homem digno e honrado, que morreu por algo em que acreditava. E vi as palavras dele se transformarem em gritos de guerra. O povo de vocês me é estranho e familiar ao mesmo tempo. Por mais que tente, jamais vou entendê-los, mas os amo mesmo assim... E tenho certeza de que um dia, conseguirão o equilíbrio.

Eles estavam fora do carro. Caminhavam na beira da lagoa. Carlos conhecia o lugar há anos, mas ele parecia diferente... Em um momento, ela parou e o encarou.

- Pense nisso. Sem esperança, ninguém é nada. Jesus morreu por ter esperança que isso melhorasse o mundo... Acreditar em algo melhor é o que os torna humanos. E assim vocês são mais do que deuses...

Em um piscar de olhos, Carlos estava de volta ao mesmo ponto na Rio Branco. Olhou o relógio, que não havia se movido um minuto. Onze e quarenta. Se pegasse um táxi, daria tempo de chegar em casa para a ceia...


Comments:
Lindamente Changeling..;)
Adorei!!!

Bjs!
Ahnis
 
Adorei a mensagem.

bjos,

Van (do stu)
 
Estive por aqui...
 
Olá, Ana!
Uma história bonita, comovente sem ser piegas, cheia de esperança, mas sem encheção de saco doutrinária, rs.
Lindas intenções.
Beijos!
 
Postar um comentário



<< Home

Archives

fevereiro 2006   novembro 2006   dezembro 2006   janeiro 2007  

This page is powered by Blogger. Isn't yours?