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segunda-feira, novembro 27

 

O mapa da Terra das Fadas


Para Nugu, o Selvagem
Março-novembro/2006.
Uma vida curta, mas plena


O menino chorava, desconsolado com a morte do coelhinho. O corpo, coberto com o pelo branco macio, estava ali, no lugar em que encerrara a sua curta vida de roedor despreocupado. Morrera de nada, de mansinho. Até mesmo a vira-lata, inimiga ferrenha e perseguidora implacável, parecia entristecida. Deitada, o nariz entre as patas, de vez em quando soltava um bufar, como se suspirasse.

A mãe fez eco com a cachorrinha. Estava cansada da cena. Compreendia a tristeza do menino, mas o que podia fazer?

- Anda, Miguel. É assim que a vida é... Os bichinhos morrem. Mamãe vai arranjar outro pra você.

Os olhos baixos, Miguel respondeu.

- Você não entende, mãe... O Nugu era o mais especial dos coelhos. Ele era...

A mãe ajoelhou-se pra ficar perto do rosto do menino.

- Ele era o que, amor?

Ergueu a cabeça, os olhos brilhando, das lágrimas e pelas lembranças.

- Era mágico! Esqueceu? Era amigo das fadas, você mesma contou...

Afagou os cabelos castanhos.

- Então, ele deve estar bem... Provavelmente, está indo pro Mundo das Fadas...

As lágrimas voltaram a brilhar.

- E se ele não souber o caminho? Ele pode se perder... Mãe...

Ela respondeu distraída, já pensando em como fazer com o corpo do animal.

- O que?

- Você não é bruxa? Poderia ajudar o Nugu... Fazer um mapa.

A proposta a pegou de surpresa. Sim, ela era "bruxa", no sentido que adorava antigos deuses, fazia rituais para celebrar a mudança nas estações do ano e buscava conhecimentos mágicos. Mas tinha pouca, senão nenhuma, familiaridade com fadas.

- Mas como eu vou fazer isso, Guel?

Um sorriso brilhou, com a confiança que as crianças mais pequenas tem na infalibilidade dos pais.

- Fazendo, ué. Você é a mãe bruxa mais poderosa de todo o Universo...

Tentando acalmar o filho - e diminuir a própria tristeza, afinal ela própria iria sentir falta do coelho - sentou-se no chão.

- Senta aqui comigo. - olhou o Nugu, deitado. Parecia que estava fingindo como tantas vezes fizera para enganar Phoebe, a cachorra. Ela aproximava-se, confiante de que finalmente o pegaria, para ganhar uma patada no focinho, quando ele se erguia correndo para se esconder. Parecendo lembrar disso, a vira-lata levantou os olhos. Quem sabe não era mais um truque?

Ana sorriu, pois descobrira uma maneira de ajudar o filho a passar pela dor do luto.

- Vamos lá... Do que é feita a Terra das Fadas?

Ele nem piscou para responder.

- De coisas doces!

- E que coisas doces temos aqui?

Dessa vez, ele precisou de um tempo para responder.

- As goiabas, mãe?

Sorriso aberto, ela assentiu, concordando.

- Isso mesmo, filhote. Pegue aquela que está no galho mais baixo... Assim... Agora, traga aqui.

A fruta foi colocada bem defronte ao focinho do coelho.

- Muito bem, e sabe o que mais tem na Terra das Fadas?

- Cores!!! Muitas cores!

A mãe não precisou dizer mais nada, pois o pequeno correu para colher algumas flores, acompanhado por Phoebe. Nugu, o Selvagem - como a mãe o chamava - devastara o pequeno quintal. Sobraram a goiabeira, a videira, um pé de acerola, muitas marias-sem-vergonha e flores rasteiras. Miguel voltou com as mãozinhas cheias de cores: vermelhas, amarelas, brancas, roxas, azuis. Uma boa coleção para indicar o caminho. Sem esperar ordem posterior, arrumou-as ao redor do bichinho com cuidado.

- Falta alguma coisa?

A mãe sorriu.

- Falta um pouco de esperança. Sem isso, como o Nugu vai achar o caminho?

Miguel ficou desolado.

- Mas mãe... Como a gente vai arrumar esperança?

Ela pareceu ficar pensativa.

- Bom, a cor que representa a esperança é verde...

- E as folhas são verdes! Eu vou usar as do pé-de-uva, porque eram as que o Nugu mais gostava e não conseguia alcançar.

A mãe conteve um arrepio ao vê-lo subir no banquinho de concreto para pegar folhas de parreira. Ele voltou com um punhado nas mãos, que entregou muito sério.

- Eu vou arrumá-las na direção da Terra das Fadas. Você sabe onde fica?

O menino apontou para o sol poente. Ela colocou-as em fila, saindo das patinhas da frente até quase a escada que descia para a casa onde moravam.

- Agora, vamos fechar os olhos e pensar em coisas boas...

- Eu já sei no que eu vou pensar, mãe. Vou imaginar o Nugu correndo na Terra das Fadas!

Os dois deram-se as mãos. Ana começou a pensar também, desejando que o bichinho estivesse bem, onde quer que fosse.

Um vento frio bateu, vindo do nascente para o poente. Ela abriu os olhos. Viu que Miguel batia palmas e sorria, enquanto Phoebe latia alucinada.

Um pequeno rodamoinho erguera as flores e folhas, que agora agitavam-se no ar.

- Olha, mãe, as fadas, elas vieram buscar o Nugu!

A cachorra parecia concordar, latindo e correndo, como se acenasse um adeus. Ana olhou para a mistura de cores a sua frente. Não tinha a pureza de seu filho ou da vira-lata, mas via borboletas no meio das pétalas.

E tufos de algodão, brancos e macios como pelo de coelho, também giravam alegremente. O rodamoinho avançou, envolvendo-a. Ela ouviu o som de gargalhadas alegres e pareceu sentir, pela última vez, o calor do coelho, que tantas vezes aninhara no colo.

Uma lufada mais forte e o pequeno tufão continuou sua jornada para o sol que terminava de se pôr. Phoebe deitou-se, quase tão esbaforida e exausta quanto Miguel, sentado ao seu lado.

Ana deu uma última olhada no corpo e de repente ele não parecia mais tão vivo quanto antes.

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