
Para Nugu, o Selvagem
Março-novembro/2006.
Uma vida curta, mas plena
O menino chorava, desconsolado com a morte do coelhinho. O corpo, coberto com o pelo branco macio, estava ali, no lugar em que encerrara a sua curta vida de roedor despreocupado. Morrera de nada, de mansinho. Até mesmo a vira-lata, inimiga ferrenha e perseguidora implacável, parecia entristecida. Deitada, o nariz entre as patas, de vez em quando soltava um bufar, como se suspirasse.
A mãe fez eco com a cachorrinha. Estava cansada da cena. Compreendia a tristeza do menino, mas o que podia fazer?
- Anda, Miguel. É assim que a vida é... Os bichinhos morrem. Mamãe vai arranjar outro pra você.
Os olhos baixos, Miguel respondeu.
- Você não entende, mãe... O Nugu era o mais especial dos coelhos. Ele era...
A mãe ajoelhou-se pra ficar perto do rosto do menino.
- Ele era o que, amor?
Ergueu a cabeça, os olhos brilhando, das lágrimas e pelas lembranças.
- Era mágico! Esqueceu? Era amigo das fadas, você mesma contou...
Afagou os cabelos castanhos.
- Então, ele deve estar bem... Provavelmente, está indo pro Mundo das Fadas...
As lágrimas voltaram a brilhar.
- E se ele não souber o caminho? Ele pode se perder... Mãe...
Ela respondeu distraída, já pensando em como fazer com o corpo do animal.
- O que?
- Você não é bruxa? Poderia ajudar o Nugu... Fazer um mapa.
A proposta a pegou de surpresa. Sim, ela era "bruxa", no sentido que adorava antigos deuses, fazia rituais para celebrar a mudança nas estações do ano e buscava conhecimentos mágicos. Mas tinha pouca, senão nenhuma, familiaridade com fadas.
- Mas como eu vou fazer isso, Guel?
Um sorriso brilhou, com a confiança que as crianças mais pequenas tem na infalibilidade dos pais.
- Fazendo, ué. Você é a mãe bruxa mais poderosa de todo o Universo...
Tentando acalmar o filho - e diminuir a própria tristeza, afinal ela própria iria sentir falta do coelho - sentou-se no chão.
- Senta aqui comigo. - olhou o Nugu, deitado. Parecia que estava fingindo como tantas vezes fizera para enganar Phoebe, a cachorra. Ela aproximava-se, confiante de que finalmente o pegaria, para ganhar uma patada no focinho, quando ele se erguia correndo para se esconder. Parecendo lembrar disso, a vira-lata levantou os olhos. Quem sabe não era mais um truque?
Ana sorriu, pois descobrira uma maneira de ajudar o filho a passar pela dor do luto.
- Vamos lá... Do que é feita a Terra das Fadas?
Ele nem piscou para responder.
- De coisas doces!
- E que coisas doces temos aqui?
Dessa vez, ele precisou de um tempo para responder.
- As goiabas, mãe?
Sorriso aberto, ela assentiu, concordando.
- Isso mesmo, filhote. Pegue aquela que está no galho mais baixo... Assim... Agora, traga aqui.
A fruta foi colocada bem defronte ao focinho do coelho.
- Muito bem, e sabe o que mais tem na Terra das Fadas?
- Cores!!! Muitas cores!
A mãe não precisou dizer mais nada, pois o pequeno correu para colher algumas flores, acompanhado por Phoebe. Nugu, o Selvagem - como a mãe o chamava - devastara o pequeno quintal. Sobraram a goiabeira, a videira, um pé de acerola, muitas marias-sem-vergonha e flores rasteiras. Miguel voltou com as mãozinhas cheias de cores: vermelhas, amarelas, brancas, roxas, azuis. Uma boa coleção para indicar o caminho. Sem esperar ordem posterior, arrumou-as ao redor do bichinho com cuidado.
- Falta alguma coisa?
A mãe sorriu.
- Falta um pouco de esperança. Sem isso, como o Nugu vai achar o caminho?
Miguel ficou desolado.
- Mas mãe... Como a gente vai arrumar esperança?
Ela pareceu ficar pensativa.
- Bom, a cor que representa a esperança é verde...
- E as folhas são verdes! Eu vou usar as do pé-de-uva, porque eram as que o Nugu mais gostava e não conseguia alcançar.
A mãe conteve um arrepio ao vê-lo subir no banquinho de concreto para pegar folhas de parreira. Ele voltou com um punhado nas mãos, que entregou muito sério.
- Eu vou arrumá-las na direção da Terra das Fadas. Você sabe onde fica?
O menino apontou para o sol poente. Ela colocou-as em fila, saindo das patinhas da frente até quase a escada que descia para a casa onde moravam.
- Agora, vamos fechar os olhos e pensar em coisas boas...
- Eu já sei no que eu vou pensar, mãe. Vou imaginar o Nugu correndo na Terra das Fadas!
Os dois deram-se as mãos. Ana começou a pensar também, desejando que o bichinho estivesse bem, onde quer que fosse.
Um vento frio bateu, vindo do nascente para o poente. Ela abriu os olhos. Viu que Miguel batia palmas e sorria, enquanto Phoebe latia alucinada.
Um pequeno rodamoinho erguera as flores e folhas, que agora agitavam-se no ar.
- Olha, mãe, as fadas, elas vieram buscar o Nugu!
A cachorra parecia concordar, latindo e correndo, como se acenasse um adeus. Ana olhou para a mistura de cores a sua frente. Não tinha a pureza de seu filho ou da vira-lata, mas via borboletas no meio das pétalas.
E tufos de algodão, brancos e macios como pelo de coelho, também giravam alegremente. O rodamoinho avançou, envolvendo-a. Ela ouviu o som de gargalhadas alegres e pareceu sentir, pela última vez, o calor do coelho, que tantas vezes aninhara no colo.
Uma lufada mais forte e o pequeno tufão continuou sua jornada para o sol que terminava de se pôr. Phoebe deitou-se, quase tão esbaforida e exausta quanto Miguel, sentado ao seu lado.
Ana deu uma última olhada no corpo e de repente ele não parecia mais tão vivo quanto antes.